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Queijos franceses na zona de Villa Maria
Há 3 anos que Ricardo Rossa é o dono deste original empreendimento. Falou do custo monetário e humano de apostar em um produto inédito que promete inesperadas fontes de trabalho
As coisas não andavam bem no Reino de Ricardo Rossa. Estava há 26 anos fabricando queijos “de batalha”(expressão usual), porém era cada vez mais difícil competir com as grandes marcas. Os “cuartirolos” * e os “barra” * apenas davam para cobrir os gastos; por isso nos últimos anos havia começado a produzir muçarela, que era um queijo mais específico e com menos competição. Mas também as redes de pizzaria enfraqueceram seus pedidos. O fantasma de velhos fracassos empresariais voltava a rondar sua cabeça.
“Para arrumar essa situação, junto com um amigo, abrimos uma fábrica de doce de leite no Brasil, mas não nos saímos bem. Afinal, como os brasileiros não consumiam muito o doce de leite, terminamos fabricando ‘recheios’ para guloseimas mexicanas e até fizemos ‘balinhas’ que no Brasil se dava na falta de troco.” Comenta Ricardo. “Com os queijos, que eu me lembre, tive problemas desde sempre. Inclusive em certas épocas, as pessoas nem imaginam, como quando foi lançado o plano Austral. Devido aos impostos altos perdemos muito na produção. Eu sempre pensei que, além da dedicação que alguém põe no que faz, é preciso o fator sorte para triunfar. E por alguma maldita razão eu nunca tive”
E o semblante de Rossa transparece sinceridade, angústia e esperança. “Sim, porque a esperança nunca se foi. Eu sempre pensei que um dia ia conseguir algo que fizesse bem as pessoas; senão, eu não poderia dormir. Porque sempre foi essa a meta: a qualidade, fazer algo que as pessoas apreciem. Nunca foi meu interesse ganhar dinheiro a qualquer preço. Mas... você acredita em Deus?”, pergunta rapidamente e sem me deixar esboçar uma resposta contínua. “Porque eu acredito em Deus e agora mais do que nunca. Sinto que estamos indo por um bom caminho. Porque tudo o que vem acontecendo há alguns meses é a mão de Deus. Essa sorte que finalmente chegou para nós, são como carinhos na alma. Eu estive parado mais de um ano e já não sabia se estava a ponto de quebrar ou me quebrar, de tanto estresse. Me levantava todos os dias às 6 da manhã e sentava na poltrona, nervoso. “Mas o que você tá fazendo acordado a essa hora”, dizia minha mulher. “É que se não me levanto, sinto que vou perder o trem.”, respondia ele a sua esposa. E não sabia de que trem estava falando, mas me sentia assim, como se estivesse esperando um trem. Carina jamais me deixou cair. Tenho uma dessas mulheres que jamais se abatem em momentos difíceis; “Ela teve que aguentar maus bocados ao meu lado” ... E Ricardo faz uma pausa. É um desses homens que precisa explicar e reexplicar um conceito, talvez essa “clareza”, para ele, é “algo imprescindível no ser humano”
-Qual ideia que tiveram para sair desta situação?
-Nos reunimos com meu sócio e amigo, Daniel, E dissemos que não tínhamos motivo para pegar leve agora. A vida inteira havíamos fabricado queijos; Passamos a vida toda trabalhando tendo como base o leite. Então nos surgiu a ideia: Vamos seguir um critério e organizar o mercado dos queijos. Por quênão? Quem fabricava queijos franceses na região?
-Quem?
-Ninguém! Existe apenas um fabricante em La Laguna. Assim adaptamos a pequena fábrica de Arroyo Cabral e foi assim nosso início. Porque para fabricar um Camembert, um Brie, um Morbier ou um Raclette precisa de condições muito diferentes em relação aos queijos “comuns” aos quais estamos acostumados. A coisa foi complicada, mas quando vi a fábrica estava instalada senti uma enorme felicidade, senti que algo bom estava se iniciando em nossas vidas.
-Qual a causa da demora do início da fabricação dos queijos?
-Eu e meu sócio decidimos que até não possuirmos todo o maquinário necessário e a fábrica estar 100% higienizada, não colocaríamos um litro de leite para fabricar nada. Sem antes colocar tudo nas devidas condições, e esse processo nos levou quase 2 anos. Até que finalmente começamos a fabricar.
-E como se saíram?
-Obtivemos alguns queijos que nos deixaram muito satisfeitos. Mas nossa marca ainda não estava no mercado. Quando a ofertávamos, nos diziam: “Mas onde vendem seus queijos?” E não sabíamos o que responder. Por isso os colocamos em uma rede de supermercados de Córdoba e se tornaram conhecidos. Começamos a ter pedidos e assim começamosavançar.
-Até que chegou a Mercoláctea de São Francisco...
-Ah, sim, até que chegou a Mercoláctea e participamos com nossos queijos de casca macia que obtivemos...
Mas Ricardo não conseguiu continuar falando porque se emociona subitamente. Um tremor lhe abala o corpo e a voz, e quem olha para ele pensa que o empresário está mais perto de uma súbita emoção poética do que preocupado com marketing.
-Só de lembrar já me dá arrepios... Olha... Nós nos inscrevemos sem nenhuma pretensão de ganhar algo, somente para saber onde nos encontrávamos a nível nacional. Nós precisávamos desse “parâmetro” que é muito difícil de conseguir quando produz esse tipo de produto específico.
Se não fosse eu insistir para que fossemos, quase que não vamos”, Intervém Carina
-E tudo por culpa da falta sorte – completa Rossa. Porque justamente duas horas antes de sair, enquanto eu trabalhava recolhendo o leite, se queimou toda a instalação elétrica da fábrica. Estava realmente desesperado. Se não fosse por ela (se referindo a sua esposa)...
“Eu disse para ele, desligue todas as chaves dos painéis de energia e vamos a entrega de prêmios, seja como for. O que tiver de problema, resolveremos amanhã.” Comenta Carina. E por fim, foi o que Os Rossa fizeram. Chegaram para a cerimônia em cima da hora e conseguiram uma vaga no estacionamento por milagre.
Ao entrar só encontraram cadeiras desocupadassomentena última fileira e justamente nesse momento o apresentador do evento anuncia: Senhoras e senhores e agora,o prêmio da categoria “Brie e Camembert” para PMEs. A medalha de prata é para Cabaña Piedras Blancas”.
E o auditório aplaudiu a uma das melhores fábricas com essa especialidade. E Ricardo sussurrou aos ouvidos de sua mulher: “Se Piedras Blancas ficou em segundo, nós não estamos nem entre os dez primeiros” mas de repente se fez um silêncio mortal: O jurado se aprontava para ler o vencedor do prêmio máximo. “E a medalha de ouro vai para “La Bohéme”, de Arroyo Cabral...”.
Ricardo não conseguiu levantar de seu assento. Sua mulher o abraça, o beija e o empurra, mas ele não tem reação alguma. O apresentador do evento volta a repetir “La Bohéme, de Arroyo Cabral, onde está?”. Então Ricardo se levanta e começar a caminhar umpouco atordoado no meio de tanta gente. Justo ele, que não fuma nem bebe, se sente subitamente embriagado em meio as pessoas que aplaudiam essa marca desconhecida. E ao subir a escada para o palco, tropeça. Está a ponto de cair, mas alguém o segura de imediato, quem seria se não Carina? O júri é composto por um espanhol e um francês. O francês se chama Roland Perrin que é uma autoridade internacional em queijos de seu país. Quando entregam a Ricardo sua medalha, Perrin o abraça tão forte como se fosse da família. “Parabéns... um grande queijo, você conseguiu um grande queijo, um pouco suave talvez, mas...” “Eu o fiz pensando no paladar argentino”, Comenta Ricardo e retorna à sua cadeira.
“Aí começou esse caminho, essa utopia, essa boemia... ainda não estamos ganhando dinheiro com os queijos, mas se Deus quiser (E ele quer), essa vez sim, essa vez…” Ricardo volta a se emocionar. Aqueles aplausos estão guardados no coração de Rossa para que ele nunca se dê por vencido.
I.W.
---------------“Na indústria láctea existem produtos adulterados” Nesse segmento da entrevista, Ricardo Rossa se referiu a temas pontuais que fazem a qualidade dos queijos e ao novo perfil de exigência do consumidor argentino.
Camembert
“Sempre pensei que se déssemos ao Camembert o gosto francês, ninguém o comeria. Nem sequer passaria perto da prateleira. O Camembert, assim como o Brie, é um queijo branco de casca com fungos. Muita gente que têm trazidos esses queijos no avião ou no ônibus tem problemas com o forte cheiroque exala. E isso é o que os franceses gostam. Mas aqui a coisa é diferente. É por isso que nós o adaptamos ao paladar argentino”.
La Bohème
“Esse é um pequeno empreendimento feito com muita força de vontade e com grande esforço. Ainda somos um muito poucos e nos consideramos uma empresa de pequeno porte. Eu sou o encarregado da firma mas também faço todo o trabalho manual. Por que demos o nome de “La bohéme”? O nome foi sugerido pelo Daniel, porque dizia, e com razão, que sempre fomos idealistas, “boêmios” da produção. Assim como a relação que o nome tem com a canção de Charles Aznavour e o espírito da nossa proposta. “A boemia” é, além de tudo, o termo que abre nossa página na internet”.
Medalha de Ouro
“O mais importante desta medalha, não é a satisfação do meu ego, mas o reconhecimento de um produto de qualidade que é possível se fazer aqui. Nós não tínhamos nem sequer um mês no mercado; ninguém conhecia nosso produto. Fomos até a cerimônia para assistir a premiação, acaba que um dos jurados era francês e não somente me felicitou, inclusive me mandou uma carta. Estas são carícias da alma que te dizia antes. Nosso Camembert obteve 93,8% de qualidade, o qual e se encontra em um nível “alto”, muito perto da excelência.
Mercado e qualidade
“Na indústria láctea existe produtos que são adulterados. Sobre tudo nas “commodities”. Há muitos doces de leite que nem sequer usam leite para fabricação. Eu inclusive tinha uma receita que levava 40% de abóbora e soro em pó. Existem 25 maneiras de se fazer doce de leite. Meu amigo Daniel havia escrito ao final de um caderno, de maneira irônica “Sempre se lembrem que o doce de leite, também pode ser feito com leite”. E isso foi o que nos fez abandonar esse negócio. Enquanto mais pequeno o mercado, mais se cuida o produto e há possibilidade de fazer com de qualidade que possa competir com as grandes empresas.
O consumidor argentino da região e sua busca por qualidade
“As pessoas estavam acostumadas a consumir os queijos franceses quando nossa moeda era equiparada ao dólar. Mas, logo a moeda americana disparou e estes produtos se tornaram inacessíveis aos consumidores argentinos. Não obstante, havíamos feito uma pesquisa e percebemos que as pessoas seguiam sentindo a necessidade desses produtos, já que estes de alguma forma estavam incluídos em sua dieta. Na França, um quilo de Camembert, por exemplo, custa em torno de 115 e 120 pesos. Acredito que o consumidor argentino nesta região está exigindo cada vez mais a qualidade. No momento, somente produzimos para o consumo interno. Pensamos lá na frente em exportar. Os nossos novos produtos já estão sendo degustados no exterior e já temos a aprovação em alguns países.”
Mão de obra
“Os queijos que produzimos requerem muita mão de obra; são praticamente artesanais. E não apenas no que requere a elaboração em si, mas também no processo de embalagem. Necessitamos de gente que faça as caixinhas de madeiras, os envoltórios particulares e o tema das impressões das etiquetas. Por essas razões que estamos progredindo, haverá muitas fontes de trabalho em Villa Maria e Arroyo Cabral.
Assepsia absoluta
“Para fabricar o Camembert e o Brie, é necessário uma assepsia total. Todas as paredes e pisos estão revestidas em plástico como uma sala cirúrgica de uma clínica hospitalar. Temos um sistema de ar permanente, um filtro sanitário que impede a entrada de outros fungos que possam competir com o branco, esse fungo que cultivamos e que é o ingrediente fundamental desses queijos. Os trabalhadores, além do mais, entram com roupas totalmente esterilizadas. No caso do Morbier e do Raclette, apesar do processo distinto, também requer grande cuidado sanitário”.
Publicado no jornal Puntal de Villa María